"Só queria então dormir e não acordar mais, nem para comer, nunca mais. Havia dias que acordava de manhã, mas não queria levantar, não fazia diferença, e voltava a dormir mesmo com um pouquinho de fome, aí então um torpor me tomava, uma estranha fraqueza me dominava (...). O processo ameaçou nessa fase a degringolar para uma catatonia. Apenas uma coisa não me deixava apagar por completo e descer insensível na noite escura que me rodeava sempre, e eram os sons.
Os sons da cidade, desde seu ruído branco às buzinas, os carros circulando, as pessoas falando e gritando pela rua, os cães latindo, algum ruído de vidro quebrando ou passos em outro apartamento... E como minha vista estivesse devastada, a memória visual retraída pela saudade e repelida pelo ódio, com o tempo me pus repentinamente também a alucinar vozes, muitas vozes do passado, vozes que povoavam as cidades da minha juventude, vida adulta e vozes que povoavam a literatura.
O conjunto dessas vozes eu chamava Os Delirantes. Seriam eles testemunhos do passado? Pessoas que eu realmente conhecera? Ou a minha mitologia onírica pessoal? Seriam as vozes frenéticas e impessoais do mundo inteiro em convulsão? Preferia imaginar que eles apontavam para uma procura do nascedouro, pelo originário infindável, o grito inumano das sereias, a descida de Orfeu em busca de Eurídice nos infernos, a busca pelo jorro potencial e sem imagem ali onde começa a acontecer a voz."